sexta-feira, 27 de maio de 2011

Varandas

Hoje mais uma vez sentei para olhar a rua e de novo senti frio. Como tem ventado na minha cidade, no outono seco de Maio, e como tenho me abstido de mim e dos meus papéis. Há um garoto que corre e me pede abrigo pra ver se não apanha do outro maior, mas me chamou de tia semana passada e eu decidi deixá-lo ali, no desespero de quem sabe a morte e ainda não tem tempo de emburrar com minha criancice. Acho que é por isso que não tenho estado ou escrito, porque estou com medo de nunca mais perdoar ninguém. A vida me tem feito crítica deliberadamente, sem saber que logo ela também se tornará pouco.
Não quero voltar à prosa falando nisso. Quero na verdade sumir enquanto caminho, sumir de frio e de velhice, e ficar só olhos e boca para falar das coisas bonitas que eu tenho no meu coração, ou até fazer meu coração sobrar sozinho e contar dos olhos dele o mundo lindo dessa praça. O menino apanha e chora, volta minguado, dou-lhe uma mão que ele segura sem o medo que eu tenho. Do toque, da praça, do tempo. Mas aproxima-se, faz tanto frio, e vai se apoiando porque quer colo. O grande problema com crianças é que acreditam que todo desconhecido que mede mais de um metro e meio é que nem o pai ou a mãe. Me dá uma vontade triste de dizer a ele que pai e mãe gostam da gente sem termos feito por merecer e que isso nos deixa mal acostumados, e que é por isso mesmo que todo pai e mãe depois que cresce pensa em morte, mas deixo estar porque faz frio.
Ele percebe que estou dura e sai andando. Gosto do carinho que ele me fez, mas não, não sou pra isso. Dá trabalho demais abrir-me às coisas que, segundo os outros, não me dizem respeito.
Levanto, sento por meia hora ou mais ao lado da minha senhorinha. Amo-a toda, mesmo que tenha morrido há uns três meses e só depois de cinco dias tenham dado falta por conta do fedor, mesmo que tenha de inventá-la como faço com esse eu-lírico tonto na história. Ela me conta que ainda chora quando vê passar um velho como o dela, metido em cachecóis e em calças de linho.
Conta que chora porque no além não pode tocar a música de saudade no acordeão. Me pergunta, sem perceber que me comovo, que sofro, que não aguento saber que a vida sobrevive, se os moradores da rua tem dado falta das manhãs de música que ela fazia. Minto que sim e ela se distrai com o banco descascado.
De súbito percebo que tudo o que vejo, ou foi bom e hoje morre, ou nasce no ponto de aprender mentiras. Vejo a casa onde morava minha infância e sonho com a morte da velhice, ainda na casa descascada, com botulismo talvez, acordando antes da rua para chama-la, sabendo coisas que ainda não sei. Sonho, porque o texto é meu e a tristeza minha, que vai nascer um córrego perto do meu jardim de folhas e que o frio vai me desprender dessa melancolia. Tenho medo das responsabilidades da idade adulta, medo de filhos, medo de pais, medo de frio, medo do agora e de não ter saudade do antes.
Chego enfim à árvore onde gravei meu nome quando beijei o primeiro dos primeiros, onde gravei meu nome e só, sem coração algum, sem flecha ou promessa de eternidade, sem nome de mais ninguém. Olho para o pingo no i tremido da menina que eu era e rio de lembrar que já naquela época fazia frio na rua. As pessoas tendem a esquecer dos pormenores e de inventar que o passado era excelente. Pois sim, fazia frio, hoje digo, hoje eu voltei a escrever. Fazia e ainda faz, e sento ao pé da sombra pra ver se abandono ali a culpa de não ter cumprido minha promessa de não esfriar também; pra ver se me lembro de algum sonho que remeta aos que existiram, mesmo tortos.
Desperto - estive dormindo. Tremo e levanto depressa e risco meu nome dali, mas o traço escorrega formando alguma outra palavra. O que é que não faz a vida, quando nos quer amaldiçoados? Me limpo dos galhos secos e me afasto, porque basta de viver, já é suficiente, posso voltar à toca. O menino vinha correndo já sorridente, mas me vê e desvia. Isso em combinação com o frio e com meu texto vago e trêmulo como o i na árvore me acalma. Estranho seria se eu, a essa altura, desse para perdoar alguém. Ainda mais por ousar ser feliz quando faz tanto, tanto frio.

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